O Supremo Tribunal Federal tem entendido ser lícita a terceirização por pejotização de profissionais liberais para prestar serviços na atividade-fim do contratante.
A tese foi adotada pela 1ª Turma no julgamento de um recurso em que a Santa Casa de Bom Jardim (RJ) questionou decisão do Tribunal Superior do Trabalho reconhecendo a ilegalidade da terceirização do trabalho de médicos. A relatoria da ação (Rcl 39.351 AgR) coube à ministra Rosa Weber. O caso é de 2020.
O mesmo entendimento foi aplicado em outras reclamações, como em um caso de contrato de associação firmado entre uma advogada e um escritório de advocacia (Rcl 53.899). Nele, o ministro Dias Toffoli concedeu liminar para suspender os efeitos de uma reclamação trabalhista em fase de execução e anulou as decisões proferidas no processo contra a banca de advogados. A ação atualmente está paralisada por pedido de vista da Procuradoria-Geral da República.
Em outro caso, que tratava de médicos prestadores de serviços terceirizados em um hospital (Rlc 47.843), o ministro Alexandre de Moraes lembrou que a 1ª Turma já decidiu, em caso análogo, ser lícita a terceirização por pejotização. Desse modo, não é possível alegar irregularidade na contratação de pessoa jurídica formada por profissionais liberais para prestar serviços terceirizados na atividade-fim da contratante.
A interpretação que vem se consolidando no Supremo é contrária ao entendimento da Justiça do Trabalho, que tem rechaçado a pejotização tanto em instâncias inferiores quanto no Tribunal Superior do Trabalho.
O professor e coordenador editorial trabalhista Ricardo Calcini explica que a pejotização é conhecida no meio jurídico como uma prática para mascarar uma verdadeira relação de emprego e, assim, reduzir custos. “Isso ocorre quando o contrato de trabalho que deveria ser firmado com a pessoa física do trabalhador se transmuta, ao arrepio da legislação trabalhista, para um contrato de prestação de serviços através de uma pessoa jurídica por ele constituída”, explica.
Apesar das barreiras impostas pela legislação trabalhista, a pejotização já é uma realidade no mercado de trabalho brasileiro. Conforme a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (Pnad), do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), o número de trabalhadores no país sem carteira assinada no setor privado atingiu 12,5 milhões no trimestre encerrado em abril deste ano. Nesse cenário, qual o impacto que esse entendimento do Supremo sobre o tema pode ter?
Terceirização x pejotização
Em 2020, o Supremo Tribunal Federal julgou improcedentes as ações contra a chamada Lei das Terceirizações (Lei 13.429/2017), que permite a terceirização da atividade-fim da empresa.
Na ocasião, sete ministros acompanharam o voto do relator, ministro Gilmar Mendes, que entendeu que, se a Constituição Federal não impõe um modelo específico de produção, não faz sentido manter as amarras de um modelo verticalizado, fordista, na contramão de um movimento global de descentralização.
O mesmo entendimento agora vem sido transferido para ações que tratam da pejotização da atividade-fim. Calcini explica, contudo, que são questões distintas.
“Terceirização envolve uma triangulação. Ou seja, uma empresa contratante e uma empresa contratada que presta serviços terceirizados por meio de seus funcionários. Pode ser para atividade-fim ou atividade-meio. Já a pejotização é quando se confunde a mesma empresa contratada com o profissional que vai executar o serviço”, explica.
A pejotização é considerada fraude quando envolve a contratação de MEI ou empresa individual do ponto de vista da legislação civil. “Pessoas jurídicas de Direito Privado são apenas aquelas listadas no artigo 44 do Código Civil”, sustenta Calcini.
Impacto relativo
Ítalo Negreiros, especialista em Direito do Trabalho do escritório Martorelli Advogados, ressalta que, apesar das decisões favoráveis à pejotização, o tema não é unanimidade nem na 1ª Turma, já que houve divergências. No julgamento da Rcl 39.351, o precedente dessa turma, as duas ministras da corte ficaram vencidas. A relatora, ministra Cármen Lúcia, julgou que o caso era de fraude à legislação trabalhista, pois teriam sido comprovadas relações de subordinação e de pessoalidade, que caracterizam a relação de emprego. Ela foi acompanhada pela ministra Rosa Weber.
Assim, para o advogado, o entendimento só pode ser aplicado em situações específicas.
“Primeiro, é preciso que preste serviços para outras empresas de forma concomitante ou que ao menos isso seja comum àquela classe profissional, de modo que não cabem situações de trabalho com exclusividade. Um segundo ponto é que esse profissional liberal tenha constituído uma PJ não apenas para preencher requisitos de admissibilidade de eventual contratação, mas com o intuito de recolher menos impostos, a exemplo das contribuições previdenciárias e Imposto de Renda.”
Matheus Gonçalves Amorim, sócio do SGMP+ Advogados, por sua vez, acredita que o entendimento da 1ª Turma apenas reafirma a jurisprudência da própria corte, que tem solidificado o entendimento pela validade da contratação por meio de pessoas jurídicas, sem que isso importe na presunção de ilicitude do contrato ou fraude à legislação trabalhista, principalmente no caso dos profissionais liberais.
“A jurisprudência da corte caminha no sentido de conferir presunção de que a relação mantida entre as partes, nessas hipóteses, tem natureza puramente comercial, inclusive afastando a competência da Justiça do Trabalho para análise de eventuais conflitos, ainda que se discuta possível fraude trabalhista, como é o caso do julgamento da ADC 48, que discutiu as relações envolvendo a incidência da Lei 11.442/2007, que trata da relação entre transportador rodoviário autônomo e empresa de transporte”, defende ele.
Nesse sentido, apesar de controverso, o entendimento do STF sobre a pejotização de profissionais liberais não autoriza a utilização indiscriminada desse recurso, já que permanece a possibilidade de apreciação, no caso concreto, de eventual fraude trabalhista.
“O que o entendimento do Supremo afastou foi a possibilidade de se defender a existência dessa fraude apenas em razão da alegação da existência de subordinação estrutural, pelo critério da ilegalidade de terceirização de atividade-fim, questão que já havia sido decidida pela corte com efeito erga omnes, nos autos das ADIs 5.685, 5.687, 5.695 e 5.735“, explica Amorim.
Já Paulo Peressin, counsel da área trabalhista do Lefosse Advogados, lembra que são precedentes os acórdãos proferidos pelo STF em julgamento de temas de repercussão geral ou em controle concentrado de constitucionalidade. “Então, a princípio, essa decisão não traz segurança jurídica suficiente para a tomada de decisões mais arrojadas, embora sirva como base argumentativa e possa indicar alguma tendência futura de posicionamento.”
Hipossuficiência x hipersuficiência
Na prática, o STF entendeu que a pejotização é incompatível com a CLT apenas em relações de trabalho em que o profissional receba salários menores, e compatível com profissionais com remuneração mais alta e condicionantes específicas.
“O entendimento só é aplicado para classes profissionais com alto teor técnico, citando médicos, por exemplo, com considerável poder aquisitivo e natureza múltipla de prestações de serviços concomitantes, eles é que se enquadram nos critérios dos julgados, pois, em verdade, se tratariam de profissionais hipersuficientes, incompatíveis com a lógica protetiva da CLT, que se aplica aos trabalhadores hipossuficientes”, defende Ítalo Negreiro.
Essa também é a opinião de Thiago Augusto Veiga Rodrigues, advogado do núcleo Trabalhista do Nelson Wilians Advogados. Segundo ele, a contratação de profissionais liberais com altas remunerações, tais como médicos, jornalistas, artistas, locutores e outros profissionais, que não se enquadram na situação de hipossuficiência, deve ser recepcionada como modelo jurídico adequado à realidade da contratação.
Horácio Conde, presidente da Associação dos Advogados Trabalhistas de São Paulo (AATSP), acredita que o tema ainda será discutido com mais profundidade no Supremo Tribunal Federal. “Eu entendo que a distinção entre o que é uma terceirização efetiva e lícita de uma atividade-fim de uma empresa e a pejotização será melhor verificada e discutida. Por enquanto, o que se disse no STF é que a pejotização é possível e a pejotização é a possibilidade de se travestir um empregado de empresa prestadora de serviço, embora subordinado ao tomador de serviço.”
Ele lembra que a CLT permite que trabalhadores hipersuficientes negociem, desde que recebam duas vezes mais do que o teto da Previdência e tenham graduação universitária. “Mas esse dispositivo não diz que esse tipo de trabalhador pode dizer que ele não quer ter vínculo empregatício, porque esse é um direito indisponível. A decisão do STF não passou a permitir a pejotização de profissionais liberais abertamente e traz uma série de apontamentos subjetivos. que devem ser analisados caso a caso.”
Guilherme Macedo Silva, advogado da área trabalhista do escritório Greco, Canedo e Costa, lembra que o entendimento só é aplicavel a profissionais liberais, que são aqueles que possuem uma formação técnica específica, regulamentada e fiscalizada por uma entidade de classe.
“Não houve uma liberação específica para pejotizar trabalhadores. O que houve foi que em um situação específica relacionada a médicos, em que os trabalhadores comumente prestam serviços nessas condições e têm uma relativização da subordinação, já que os plantões são definidos por eles, à revelia do empregador”, explica.
“Os departamentos jurídicos das empresas, por exemplo, não podem seguir esse caminho. Se for constatado que simplesmente um trabalhador deixou de ser contratado para ser pejotizado e que sua contratação não tem as mesmas características do caso dos médicos, esse profissional pode ter o vínculo de trabalho reconhecido”, completa.
Fonte: https://www.conjur.com.br